Médica Dentista
HPA Magazine 23 // 2025
Em pleno ano 2025 poderemos pensar que a cárie precoce na infância é uma realidade já pouco frequente, uma vez que a sociedade está mais consciente da importância da higiene oral na infância. No entanto, na minha prática clínica diária de odontopediatria, não é isto que se verifica.
Infelizmente, é frequente receber crianças entre os dois e os seis anos com mais de 4 peças dentárias cariadas, já com episódios de dor e/ou abcesso dentário. As causas são sobretudo a introdução precoce de açúcar na dieta (muitas vezes antes dos dois anos), o consumo elevado de alimentos com grandes quantidades de açúcar, nomeadamente gomas, chocolate, bolachas e bolos ultraprocessados, mas também a dificuldade na higienização dentária correta. É frequente os pais referirem que a criança não permite ou não colabora na escovagem dentária, e perante isto acaba por existir alguma permissividade, sendo realizada uma escovagem insuficiente ou simplesmente deixando a criança escovar sozinha.
Ora, a cárie dentária em dentes de leite evolui rapidamente, pelo que quando as crianças chegam até nós, apresentam já necessidade de tratamentos extensos e complexos, exigindo várias sessões de tratamento, com administração repetida de anestesia local.
Como não será difícil de imaginar, nos primeiros seis anos de vida nem sempre há colaboração suficiente por parte da criança para a realização dos tratamentos necessários em contexto normal de consultório dentário. É também frequente receber crianças com alterações de comportamento associados a espectro de autismo ou síndromes, que não permitem os tratamentos em cadeira. Quando após a segunda ou terceira tentativa de intervenção, não existe a mínima colaboração, há que pensar em novas estratégias.
Se a criança tiver 4 ou mais anos, a primeira opção passa por tentar recorrer ao uso de sedação consciente, disponível na maioria das unidades de Medicina Dentária do Grupo HPA. Trata-se de uma mistura de protóxido de azoto e oxigénio, administrada através de uma máscara nasal, que é inalada pela criança durante o procedimento dentário. Provoca um estado de depressão mínima da consciência, permitindo que a criança fique mais calma e menos reativa ao que a rodeia. O nível de gás administrado pode ser reduzido ou aumentado pelo Médico Dentista, consoante o grau de colaboração da criança. A recuperação é rápida, bastando 10 minutos para que o fármaco seja totalmente eliminado pelo organismo.
No entanto, há casos em que a sedação consciente não é suficiente para permitir a cooperação da criança, e até aos 4 anos esta técnica não é eficaz.
A solução passa então pela realização de tratamentos dentários sob anestesia geral, em bloco operatório, nas unidades HPA de Alvor e Gambelas.
Na consulta de Medicina Dentária pré-operatória, são realizados RX dentários de forma a planear os tratamentos a realizar. Se tal não for possível os RX serão realizados já em bloco operatório. O Médico Dentista entregará então um plano/orçamento aproximado de todos os tratamentos dentários bem como uma estimativa do tempo e custo de uso do bloco operatório.
Aceite este plano pelos pais da criança, serão marcados os exames e consultas pré-operatórias, nomeadamente análises sanguíneas, eletrocardiograma, RX ao tórax e consulta de enfermagem pré-operatória, necessários para que possa ser avaliada pelo médico anestesista, a viabilidade da realização da anestesia geral em segurança.
Após anestesiada, a monitorização da criança é feita constantemente pelo Médico Anestesista e, também pelo menos, um enfermeiro, durante toda a intervenção.
Estão então reunidas as condições para que o Médico Dentista possa realizar os tratamentos de forma metódica e sequencial, de todos os dentes afetados.
Começamos por realizar os já referidos RX para confirmar quais os procedimentos a efetuar. É frequente, devido à profundidade das cáries encontradas, ser necessário realizar tratamentos pulpares (tratamentos da polpa ou nervo do dente). Nestes casos, optamos por reabilitar os dentes com coroas pediátricas pré-formadas, em detrimento da realização de restaurações a resina composta. Isto permitirá manter a estrutura e função dentárias asseguradas até à altura que os dentes de leite caem, uma vez que as restaurações em dentes decíduos muito destruídos, fraturam com facilidade.
Estando a criança a ser sujeita a uma anestesia geral, procuraremos oferecer tratamentos com a maior durabilidade e previsibilidade possíveis. Se se tratarem de dentes posteriores (atrás), estas coroas serão de aço. No caso de se tratarem de dentes anteriores (da frente), optamos por colocar coroas em zircónia (cerâmica) devido à exigência estética.
Em cáries de menores dimensões são realizadas restaurações a resina composta.
No entanto, em dentes com destruição muito profunda ou história repetida de abcesso dentário, a opção poderá ser a extração do dente. Neste caso, o Médico Dentista poderá aconselhar a colocação de um mantenedor de espaço. Trata-se de um pequeno aparelho colocado no dente adjacente ao dente extraído, de forma a permitir a manutenção do espaço do dente removido precocemente, até à altura da erupção do dente definitivo correspondente.
A grande vantagem dos tratamentos dentários em bloco operatório é permitir a execução de um grande número de tratamentos num curto espaço de tempo. Numa intervenção recente, em apenas 3 horas foi possível realizar o tratamento de 12 dentes decíduos, com colocação das já referidas coroas de aço, em alguns dos molares. Os tratamentos são, desta forma, realizados de modo seguro e em boas condições de trabalho, que muitas vezes são difíceis de conseguir em ambiente de consultório.
Muitos perguntarão: “E vale a pena tanto esforço para tratar dentes que vão cair?”.
A resposta é um claro sim. A criança sofre com dores frequentes e os pais estão muitas vezes desesperados sem saberem o que fazer. Normalmente, já consultaram vários dentistas, sem sucesso. A manutenção de abcessos repetidos poderá afetar a estrutura dos dentes definitivos e a perda precoce de dentes de leite poderá levar a transtornos de erupção nos dentes permanentes e a graves problemas de falta de espaço. Realizar os tratamentos dentários necessários permitirá manter a função mastigatória, fonética e até social, da dentição da criança.
Os tratamentos dentários sob anestesia geral, não são a primeira opção, mas podem ser a solução para muitas crianças e suas famílias. Sem fobias, sem traumas, de forma segura e eficaz.
Afinal, o sorriso de uma criança, tudo merece...